Boca Maldita: a história posta à mesa de bar de Cabo Frio
Reduto da vida política e cultural da cidade é lembrado por antigos frequentadores em série da Folha
Nada de memes, figurinhas ou mensagens em grupos de WhatsApp. Num passado já relativamente distante, em tempos pré-internet, já se discutiu política em Cabo Frio com uma boa resenha olho no olho sobre os rumos da cidade, regada a chope e petiscos temperados com fofocas e intrigas sobre os adversários. Mas apesar das maledicências e das (muitas) discussões acaloradas, no antigo bar e restaurante Boca Maldita, no Centro, prevalecia o respeito e o espírito democrático, segundo antigos frequentadores ouvidos pela Folha. Figuras de matizes ideológicas que variavam de seguidores do comunista Karl Marx a adeptos do liberalismo econômico podiam dividir a mesa cordialmente, numa lição de tolerância que poderia ser replicada nos dias de hoje.
Diferentes gerações de políticos frequentaram a Boca, entre as décadas de 1950 e 1990, muitas vezes numa relação passada de pai para filho. Filho do ex-vereador Wilmar Monteiro, Eduardo, conhecido como Duca, sempre circulou nos meios políticos da cidade. Apesar de valorizar os momentos em que os amigos jogavam conversa fora, em papos triviais sobre a praia ou a lagoa, era nos papos sobre a vida pública que a temperatura invariavelmente subia. Mesmo que depois os envolvidos na contenda saíssem abraçados do lugar.
– Falava-se na parte da República, no governo do estado, mas basicamente se falava de Cabo Frio. E Cabo Frio é quebra pau. Se fazia muito mais crítica do que elogio. Aliás, 95% eram críticas. Mas foi muito bom porque muita coisa saía daquelas conversas ali ao ouvido que quem estava no poder ou quem estava na direção da cidade. E às vezes ajudava em alguma coisa. Às vezes não. Na maioria não, mas às vezes ajudava em alguma coisa. E de maneira particular, o grande barato ali era estar com os colegas tomando um café ou mesmo uma cerveja e jogando conversa fora.
O que saía daquelas mesas reverberava como se fosse uma tribuna e chegava aos ouvidos de quem fosse, mas principalmente a quem estivesse no poder. Para um atento repórter entre meados dos anos 1980 e o início da década de 1990, o que não faltava era assunto. Por uma questão geográfica, o jornalista Edinho Ferrô levava vantagem, uma vez que o veículo onde trabalhava, a Rádio Cabo Frio, ficava praticamente ao lado do Boca Maldita, no coração da cidade, em frente à Praça Porto Rocha.
Em meio a todo aquele clima de informalidade, o então iniciante na imprensa radiofônica Ferrô colhia depoimentos em enormes gravadores e os levava correndo para repercutir no estúdio. A situação o fazia bater ponto no lugar constantemente. No calor dos acontecimentos, ele brinca, a cerveja que chegava gelada, muitas vezes descia quente na garganta.
– Não havia internet, nem grupos de WhatsApp. Então, como bom iniciante no jornalismo radiofônico, precisava estar atento aos temas da política da cidade, e o único lugar que fazia eco era na Boca Maldita. Aliás, como era pra rádio, ali já aproveitava os temas e gravava as entrevistas para repercutir na Rádio Cabo Frio AM. Como não havia celular, ou pegava meus entrevistados ali ou não havia como localizá-los depois. Achava todo mundo no mesmo local. Aliados, adversários, todos bebendo no mesmo copo. Era difícil ter furo porque todo mundo sabia de tudo. Eu era o ‘mensageiro’ que furava a bolha e levava aqueles temas ao conhecimento de toda a população – relembra.
Atualmente dono de um dos serviços de bufê mais prestigiados da cidade, Gilmar Brochini foi gerente do Boca Maldita, período que acredita ter sido importante para compreender o funcionamento da noite de Cabo Frio. Ele lembra do período em que o atual prefeito, José Bonifácio, em uma gestão anterior, fez um calçadão em frente ao estabelecimento.
Gilmarzinho lembra que o prefeito pediu para que uma mesa fosse colocada na rua e de lá despachou muitas vezes. Para além do movimento de figuras políticas, o empresário lembra-se da efervescência cultural.
– Nesse calçadão, começamos a promover cultura, tipo noite da poesia e, com o secretário Ricardo do Carmo, promovemos Folia de Reis e outros eventos – recorda.
Duca Monteiro reforça o caráter de amizade e camaradagem que havia naquele lugar.
– Ali se falava da história da cidade, se falava da sua família, de outras situações; do delegado (linha-dura Moacir) Bellot, que era uma história antiga de Cabo Frio; do Bloco da Rama; da praia como era; da lagoa; do canal, são muitas histórias. Então não era só a política em si. Era um grupo de amigos que sentava e recebia bem todos que chegavam. Normalmente, na grande maioria das vezes, um respeitando a opinião do outro, botando limite, ninguém levando para o lado pessoal – rememorou.
Canetadas etílicas: prefeitos faziam do Boca a extensão dos gabinetes
Se o político tem que andar nas ruas para sentir a temperatura e os humores da opinião pública, no caso do Boca Maldita, o bar era praticamente uma extensão da sede do governo municipal. O atual prefeito, José Bonifácio, já governou o município em outras duas oportunidades, mas frequentou o antigo point em outros momentos da sua vida pública.
– Ali era um ponto de reunião da fofoca política. Eu fui vereador, prefeito e sempre fui de rua, sempre tive contato mesmo, embora alguns desagradáveis. A gente era abordado. Eu nunca fugi da Boca Maldita, mesmo sendo prefeito e tendo motivo de recebimento de críticas – comenta.
Ao longo de todo o período em que frequentou o Boca, Zé presenciou diversos momentos e coleciona memórias e “causos”. Em um deles, lembra da época em que o voto para prefeito e vereador ainda era feito em cédulas e depositados em uma urna. Para prefeito, bastava assinalar com um “X” no quadrado correspondente, mas para vereador, era preciso lembrar ou levar anotado o nome ou o número do candidato. Para votar, era preciso escrever uma das duas informações na cédula.
O atual prefeito recorda uma ocasião em que a situação virou piada.
– Eu me lembro do Gilson, do restaurante lá do Mercado de Peixe, que sempre foi muito brincalhão, e ele dizia, brincando, que votava em todo mundo. Ele sabia o número de todos os candidatos a vereador, até os que frequentavam a Boca Maldita. Aí ele dizia: “eu voto em você”; e o candidato respondia “qual é o meu número?”. Um belo dia, estava lá o ex-vereador Wilmar Monteiro. Wilmar chegou, e o Gilson apontou e disse que estava chegando o candidato dele a vereador. Aí Wilmar perguntou: “Gilson, qual é meu número?” O Gílson respondeu: “Ô, Wilmar, você pensa que eu sou analfabeto, vou escrever Wilmar Monteiro”. Foi uma gargalhada geral porque ele não sabia o número do Wilmar. Então, tinha essa tirada humorística – lembra Zé.
O ex-prefeito Alair Corrêa, que governou a cidade por quatro mandatos, também era figura carimbada entre as mesas e o balcão do Boca Maldita. Conhecido por não levar desaforo pra casa, o então prefeito lembra-se do dia em que correligionários do PDT aguardavam a chegada do então governador Leonel Brizola (1983-1987) na Praça Porto Rocha.
À época filiado ao PMDB, Alair diz que foi provocado por um dirigente pedetista ao chegar no restaurante, mas que relevou a brincadeira. Ao sair, o chiste se repetiu, e a confusão foi armada, com direito a soco do então prefeito no desafeto, que depois virou amigo. O episódio teve a participação de Zé, que entrou no meio para apartar a briga.
– Bonifácio veio por trás e me levou dali. Aí chegou o pessoal do “deixa-disso”. A confusão se acabou, mas aquele momento foi discutido dois meses depois porque a pessoas acharam que eu tinha ido lá pra provocar porque era uma festa do PDT. Mas ali era um lugar de todo mundo, não era só do PDT. Todos os políticos iam ali, poetas, músicos, compositores. Ali que conversava sobre tudo na cidade – recorda.
Em outro episódio, Alair relembra que um antigo diretor da Cedae, que era de Macaé, foi até o restaurante Dom Bosco, que ficava próximo ao Boca, para questionar decisões do então governador Faria Lima (1975- 1979), em visita à cidade. Acabou fora do cargo.
– Ele foi discutir com o governador. Foi exonerado dentro do Dom Bosco. Saiu do Boca Maldita, onde estava, para ser exonerado. Deixou a direção da Cedae naquele momento porque discutiu com o governador. Ele era muito explosivo. Mas isso tudo era da Boca Maldita, as pessoas estimulavam essas brigas que aconteciam – disse.