Álcalis: a gigante que mudou para sempre uma pacata vila de pescadores
Capítulo do livro 'Cabo Frio Revisitado', da Sophia Editora, relata processo de implantação da estatal, em Arraial
Na primeira metade dos anos 1940, uma pacata vila de pescadores no então distrito cabo-friense de Arraial do Cabo entrou no radar do governo de Getúlio Vargas (1930-1945) para a implantação de um projeto de industrialização nacional. É sobre o conturbado e difícil processo de instalação da Companhia Nacional de Álcalis que trata o décimo capítulo do livro ‘Cabo Frio Revisitado – a memória regional pelas trilhas do contemporâneo’, obra editada pela Sophia Editora (432 págs.), com artigos organizados pelo arquiteto e ilustrador Ivo Barreto.
Autor do texto, o professor universitário Walter Luiz Pereira abordou a trajetória da gigante estatal produtora de barrilha [insumo usado na fabricação de vidros], soda cáustica e cal entre o início do projeto, em 1943, ainda na Era Vargas, e 1964, ano do golpe que levou os militares ao poder. Walter relata que o começo do interesse em estudar a companhia surgiu em 2007, quando ex-funcionários da Álcalis, cujas atividades foram encerradas no ano anterior, se reuniram na universidade em que trabalhava com o ministro do Trabalho da época, Carlos Lupi, para tentar retomar o trabalho na companhia.
Foi então que Walter, que já se dedicava ao estudo da indústria salineira na região, com ênfase no século 19, resolveu mergulhar fundo no tema. A dedicação resultou em artigos acadêmicos publicados em instituições de prestígio, como a Fundação Getúlio Vargas.
– A partir daí, passei a ter contato com vários trabalhadores e ex-trabalhadores e comecei a montar um projeto. Na verdade, meu projeto de doutorado foi sobre a indústria salineira. Meu interesse de estudar a empresa não só passa pela Álcalis mas também passa pela industria salineira em Cabo Frio. Notadamente quando há o projeto original e posteriormente ao projeto original, quando a empresa começa a tomar forma, é também no mesmo contexto em que em Cabo Frio se instala uma produção salineira com uma tecnologia bem mais avançada, com a inauguração de uma nova planta da companhia Perynas e também da Refinaria Nacional do Sal – explica.
A proposta de Walter foi abordar os aspectos políticos, sociais e regionais relacionados à história da empresa, que deixou marcas profundas na região e, em particular, no município cabista, emancipado em 1985 e que tem no parque fabril abandonado na porta de entrada da cidade uma fantasmagórica lembrança dos tempos em que Cabo Frio e Arraial do Cabo estavam no mapa da indústria de base nacional, formando um tripé junto com a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda; e a Fábrica Nacional de Motores, em Duque de Caxias.
Para isso, o escritor teve que vencer as dificuldades encontradas pela carência de referências e de bibliografia sobre o assunto.
– Fazer história de empresa no Brasil, notadamente de empresa privada, é muito complicado. Para empresa pública você tem um universo documental maior, mas também é difícil. No caso da Álcalis, foi muito interessante porque eu pude partir de várias perspectivas distintas. Juntar a história de uma empresa estatal às histórias política, social e regional. Criou-se então para mim uma expectativa de estudo muito ampla, de uma base muito integrada de estudo que eu pude juntar o econômico, o social e o político. Todos esses campos de estudo estão presentes, de certa forma, no artigo publicado no livro porque eu remeto a todos eles. Não só a questão da empresa, mas como funciona esse universo do trabalho dela e o que a Álcalis representou em termos regionais – relata.
Dificuldade de implantação e movimento migratório
Parque fabril abandonado hoje é fantasmagórica lembrança de quando a empresa estava na ativa (Foto : Ernesto Galiotto)
Em termos químicos, a barrilha é conhecida como carbonato de sódio, um sal branco e translúcido. Entretanto, a oferta abundante de água salgada na região esteve longe de ser um facilitador para a operação da companhia. Além de entraves apontados por técnicos estrangeiros, como a temperatura da água, a produção do sal local não era considerada suficiente para a oferta de matéria-prima, o que obrigava a importação do produto do Nordeste, o que encarecia o processo.
Antes disso, a própria implantação da empresa foi complicada e durou mais de uma década, conforme explica Walter. Iniciado em 1943, o projeto só saiu de fato do papel no fim dos anos 1950. Ele foi entregue a um banco norte-americano que, ao fim da análise, se negou a financiá-lo. O investimento necessário foi conseguido junto a uma agência francesa, mas essa não foi a única atribulação. Salineiros nordestinos pleiteavam que a Álcalis fosse construída longe de Arraial. Nesse caso, os laços familiares foram decisivos para o estado do Rio ganhar a parada.
– Tinha a força política do [Ernâni do] Amaral Peixoto, genro de Vargas, que era interventor no Rio, e posteriormente assume postos importantes, e defendeu a posição do Rio, por ser próximo dos maiores mercados consumidores do país e efetivamente no caso da Álcalis, por ser uma região produtora de sal que poderia atender a demanda – explica o estudioso.
A produção dispendiosa afetou a competitividade da Álcalis. Walter explica que o preço da barrilha produzida na Região dos Lagos era maior do que o da concorrência. Com isso, os fabricantes de vidro para a indústria farmacêutica preferiam importar o produto. Como pano de fundo, havia a turbulência política nos anos 1960, com a renúncia de Janio Quadros e a deposição de João Goulart, que estimulava movimentos de trabalhadores para cobrar seus direitos e melhorias na empresa.
As dificuldades econômicas ao longo dos anos desembocaram na privatização da empresa, no começo da década de 1990, no governo Collor. A companhia se arrastou até a falência, em 2006, deixando dívidas trabalhistas cobradas até hoje na Justiça. Noves fora a derrocada financeira, a trajetória de uma empresa nascida da aventura desenvolvimentista brasileira foi marcante para a formação do ‘Cabo’, apelido de Arraial, como é conhecido hoje.
– Para Arraial teve uma importância muito grande, no sentido de uma indústria transformadora que se estabelece numa colônia de pescadores, numa vila rústica. A parte final do artigo fala um pouco disso, de uma sociedade que vive da pesca e que está no entorno de uma grande indústria de base. Isso vai mudar muito a configuração desse distrito. Isso implica num fluxo de migrantes muito grande para Arraial e Cabo Frio, de nordestinos e de uma população que vem do Norte Fluminense, de Campos e Itaperuna, pelo fato dessa empresa oferecer condições de trabalho muito superiores às que os trabalhadores no estado do Rio tinham naquela época – finaliza o professor.