OPINIÃO

O cabo-friense e o trabalho infantil

8 JAN 2020 • POR Nathan Barbosa • 14h40

Nathan Barbosa

Com a chegada do verão e a possibilidade de aumento da renda, famílias de várias cidades da Região dos Lagos se mobilizam para iniciar suas atividades de venda nas praias de Cabo Frio. Embora haja um cadastro formal de ambulantes, as atividades informais persistem e crianças e adolescentes aparecem como força de trabalho para aumentar a renda e, não raras vezes, garantir o básico dentro de casa. Frente a essa complexa dinâmica entre trabalho e pobreza, os profissionais do Sistema Único de Assistência Social têm o desafio de diminuir os danos à infância e garantir o acesso da família às políticas públicas.
O Plano de Enfrentamento ao Trabalho Infantil realizado pelo município de Cabo Frio mostrou que, além de acompanhar famílias vulneráveis, é preciso esclarecer o real perfil das crianças que trabalham nas ruas da cidade. Na interpretação geral, prevalece as experiências pessoais de trabalho na infância e a necessidade de um mal menor para justificar a necessidade de trabalho. Outros questionam a existência de alternativas e a eficácia do Estado na questão. “É melhor trabalhar do que traficar” ou “Eu trabalhei e estou bem”, são as frases mais repetidas, que simplificam uma questão complexa e naturalizam uma situação que, por lei e por ética, não deve ter o apoio de ninguém. 

Desde 2008, o Brasil reconhece algumas atividades como as piores formas de trabalho infantil, dentre as quais está o tráfico de drogas e o trabalho sem proteção a radiação solar e calor. Os danos à saúde são óbvios, mas não parecem sobrepor a naturalização da força de trabalho infantil. Há uma concepção emocionalmente frígida que teima em emancipar a criança. Se está traficando, pode ser penalizada como adulto. Se está trabalhando, pode colaborar como adulto. A infância parece estar em risco, mas não de qualquer criança. Esse risco tem uma etnia e uma classe econômica específicas, de crianças pobres e majoritariamente negras. 

Não é por acaso que a força de trabalho das crianças é necessária em períodos de crises. Na Grécia antiga, havia um conselho para decidir se o recém-nascido tinha saúde suficiente para sobreviver e servir às guerras. Nos 300 anos do regime escravista brasileiro, 5% das pessoas traficadas, isto é, 175.000 pessoas, eram crianças que serviam ao pastoreio, artesanato, lavoura e ao trabalho doméstico. A história mostra que, em tempos menos civilizados, a pobreza convoca crianças ao trabalho infantil e a ausência de escolarização perpetua essa condição. 

Nos dias de hoje, o enfrentamento ao trabalho infantil se debruça sobre situações nas quais uma criança de nove anos passa oito horas exposta ao sol, às vezes sem a presença de um responsável. Peles queimadas, lábios ressecados e feridos, oferecendo jujubas em meio a centenas de outras crianças desfrutando das férias. Os profissionais da Assistência Social, por sua vez, se dedicam a garantir que as políticas de saúde, educação, lazer e cultura estejam presentes na vida das famílias em que crianças traficam ou vendem balas. Em Cabo Frio, inclusive, o mesmo órgão que enfrenta o trabalho infantil também é responsável pelos adolescentes em conflito com a lei. Nada deveria levar a pensar que é melhor desistir da tarefa por uma infância saudável, onde dignidade e honestidade sejam atributos aprendidos em condições que não causem danos à saúde das crianças.

(*) Nathan Barbosa é psicólogo, trabalhador do SUAS e ativista dos direitos humanos.