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‘Ser cozinheira é ser alquimista’

‘Ser cozinheira é ser alquimista’

Fernanda Carriço lança hoje, na Nobel, seu primeiro livro: ‘Sabor & Prosa’

03 março 2016 - 10h29

Enquanto a economia do país era devastada pelo tornado da inflação no governo Sarney, a família Carriço, em Arraial do Cabo, estocava carne, um dos produtos mais caros aos brasileiros. Seu Wanderlei estava embarcado no Canadá a trabalho, e a esposa, dona Ercília, o acompanhava no navio. Os filhos do casal, Fernanda e o também Wanderlei, ficaram em casa com uma empregada doméstica. Fernanda cuidava do irmão, enquanto a funcionária era a encarregada de cozinhar, dia após dia, os mesmos bifes armazenados e pré-cozidos há semanas. “Foi aí que eu peguei trauma de carne”, conta a jornalista neta de Victorino Carriço, quase 30 anos depois, em uma pausa no expediente da Folha, onde é chefe de reportagem, e na véspera de lançar seu primeiro livro: ‘Sabor & Prosa’ (Sophia Editora, 165 págs., R$ 30) tem noite de autógrafos hoje, às 20h, na livraria Nobel, no Shopping Park Lagos.

Para substituir a carne, Fernanda precisou usar de criatividade. Ainda mais quando, aos 18, foi morar sozinha em Niterói para cursar História na Uerj de São Gonçalo. Foi aí que entrou na vida dela a carne de soja. Para transformar um alimento considerado ‘sem graça’ em refeição cotidiana, Fernanda precisou tirar alguns coelhos da cartola.

– Ser cozinheira, para mim, é ser alquimista. É você usar de mágica para transformar o que a terra te dá no alimento para a sua alma – reflete ela.
E foi assim, em meio aos pimentões coloridos, cebolas, alho e azeite que ferviam no caldeirão mágico de sua cozinha junto à carne de soja, que Fernanda tornou-se alquimista; apaixonada por cheiros, texturas e sabores; e, agora, contadora dessas histórias.

Folha dos Lagos – ‘Sabor & Prosa’ é um livro de receitas ou é sobre a sua relação com a comida e a cozinha?
Fernanda Carriço –
Ele serve das duas formas. Tem histórias e receitas, mas ele não é didático. Eu não estou ensinando o passo-a-passo de fazer certa comida, são crônicas sobre a minha relação com a gastronomia, que, na maioria das vezes, vêm acompanhadas de receitas. Eu não sou chef de cozinha, eu sou uma cozinheira.

Folha – E o que é ser cozinheira, para você?
Fernanda –
Ser cozinheira, para mim, é ser alquimista. É você usar de mágica para transformar o que a terra te dá no alimento para a sua alma. Comida é, para mim, uma coisa muito séria. Eu não consigo, por exemplo, comer alguma coisa que alguém de má vontade joga para mim. Quando eu cozinho, faço com amor, eu passo a minha energia para aquele alimento. Existe uma parte muito forte de mim que acredita nisso e sente isso. Eu sou maravilhada com a terra, com as coisas que a terra nos dá. A comida é energia para o corpo e também para a alma, então, fazê-la e servi-la, é não só um gesto de amor, mas um gesto de mágica, por isso a alquimia.

Duas horas antes da entrevista, Fernanda desensacou um punhado de linguiça partida que seria seu almoço. Repórter do jornal, Gabriel Tinoco queixou-se, ‘não sei o que vou almoçar’, o que fez Fernanda imediatamente mudar de direção, puxar dinheiro do bolso e pedir a ele para comprar cinco batatas. Ela abandona a estação de trabalho, vai à cozinha e começa a preparar terreno para um purê, enquanto ferve a linguiça e separa um bife que, como alquimista, parece ter produzido do nada. Ela me pede para amassar as batatas, mas, ao me ver castigando o socador no fundo da panela, corre até mim: “não é assim que se trata o alimento!”. Meia hora depois, serve à mesa purê de batatas, linguiça frita e tiras de bife, transformando a comida de um no banquete de dois.

Folha – Uma das passagens do livro conta a história de quando você foi ao Sul do país e lá conheceu produtores que cultivavam todo tipo de alimento para consumo próprio. Você descreve como uma experiência incrível...
Fernanda –
Eles só compravam pó de café, açúcar e arroz, o resto eles plantavam tudo. É outra coisa quando o alimento vem direto da terra, e eu conto algumas histórias a respeito disso no livro. Eles tratavam cada alimento com carinho e para mim é assim que a comida tem que ser tratada (lembram da batata?). Conhecer essas pessoas é parte importante das histórias que eu conto nesse livro.

Folha – O livro dá a impressão de que a comida te leva a lugares que você nunca foi. À Itália, por exemplo. Você fala com tanta propriedade de lá...
Fernanda –
Eu nunca fui à Itália, não sei como são os cheiros, os lugares, mas se você me perguntar o que alguém da Sicília provavelmente está comendo agora, eu posso te responder. A gastronomia tem disso, ela te faz viajar, tanto para lugares que eu já fui – o Sul, a Argentina, lugares no interior do Brasil –, quanto para outros que eu nunca fui, e a Itália é um exemplo. O livro vai te fazer viajar por esses lugares maravilhosos também.

O livro faz Fernanda, hoje aos 42 anos, se deslocar não só no espaço, visitando diversas partes do mundo, como no tempo da própria vida. Na crônica ‘O tradicional e delicioso frango assado’ ela volta aos 19 anos, quando o bolso de estudante deixava aquele frango de padaria alimentar só a imaginação. Com o primeiro salário, realizou seu sonho de consumo: “Não esqueço a alegria e o orgulho com que caminhei para casa na intenção de devorar um frango inteiro.”, conta, em um trecho. O episódio mostra que desde a juventude realização e comida caminham juntos para Fernanda. Hoje, são as histórias sobre cozinha contadas por ela que representam a nova realização: o livro que será lançado hoje, seu primeiro.

Folha – Qual a semelhança entre cozinhar a escrever?
Fernanda –
Primeiro, é a concentração que os dois exigem. Mas, principalmente, é o fato de que, para ficar bom, os dois têm que ser feitos com amor.

Folha – Você diz que quando cozinha para alguém, espera que a pessoa receba as boas energias que você quer passar. E no livro: o que você espera que as pessoas recebam de ti?
Fernanda –
Eu espero que esse livro desperte na pessoa a coragem para encarar a cozinha como uma coisa boa, não uma coisa assustadora. Eu não sei se as receitas são voltadas para quem é iniciante, intermediário ou já sabe cozinhar bem, mas o que eu tenho certeza é que, quando o leitor chegar à última página, ele vai ter a vontade de ir para a cozinha, ou vai mudar a relação dele com a alimentação.

Quem for à livraria Nobel na noite de hoje vai testemunhar mais um passe de mágica de Fernanda Carriço: das despretensiosas crônicas publicadas semanalmente na Folha à noite de autógrafos, brindada com as cervejas artesanais locais da Jecay que serão servidas, e a presença de amigos e leitores de longa data. Um livro que já é sucesso antes mesmo de nascer e que mostra que com amor ao que se faz e dedicação até ser alquimista é uma tarefa fácil.

SERVIÇO
Lançamento do livro ‘Sabor & Prosa – As histórias das minhas receitas e as receitas das minhas histórias’
Editora: Sophia
Páginas: 165
Preço: R$ 30
Hoje, às 20h
Livraria Nobel, Shopping Park Lagos
Av. Henrique Terra, s/n, Palmeiras